I - Reencontro em São Jorge de Sófia! 50 anos depois!
CorteVale











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CorteVale
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Hoje o "escritório" de muita gente fica... algures... em qualquer parte do mundo!
Para uns é inimaginável e inconcebível trabalhar umas semanas com as Lideranças dos Correios em Atenas, no mês seguinte com gestores da DHL, em Bona, ou estar pelo Carnaval com equipas do Banque Postal em Paris, próximo da Páscoa estar com Directores Provinciais em Luanda e pouco depois regressar a uma agência europeia em Bruxelas, ou dar um salto a um Banco em Colónia, ou mergulhar numa multinacional em Istambul, ou estar uma semana em Faro com Médicos a finalizarem a sua Especialidade ou ir até à Universidade de Aveiro trabalhar nos Cuidados Primários ou... ou...
Na mesma semana trabalhar 2ª e 3ª em Zurique, 4ª e 5ª estar na sede da UPU - União Postal Universal em Berna e 6ª e sábado estar na Faculdade de Ciências Humanas em Genéve...
Certamente que a maioria das pessoas preferem ou não podem sair do seu "sofá" ou "zona de conforto" pessoal, ou não precisarão de tamanha mudança pessoal ou mesmo que a quisessem empreender não podiam, porque não tiveram ou não criaram as oportunidades e preparações necessárias a este modo de vida;
Para outros, trata-se de uma inevitabilidade, quase coisa natural, pois a mudança e a inovação são necessidades vitais; também para muitos é um desafio vital, uma luta contra o inconformismo e a lamentação permanente!
Para muitos e conheço bastantes... talvez seja um destes... não existirão razões ou serão todas as anteriores as que os obrigaram ou desafiaram a ter o seu "escritório" em qualquer sítio.... É a vida!
Lembro-me, após uma conferência, em S. Francisco, há já uns bons 17 ou 18 anos, ter visitado um parque natural fabuloso (Josemite Valley) e ter metido conversa com um polícia, numa pausa num parque de descanso e... perante tanto frio e desconforto daquele lugar lhe ter referido o quão difícil e árduo seria trabalhar em tão duras condições...
Só para ver o valor da positividade e sentir que as dificuldades estão, a maioria das vezes dentro de nós e das nossas atitudes, o polícia sorriu-me, pegou-me no braço e andamos uns bons 100 m até à beira de um enorme precipício e estendendo o braço para a amplitude da paisagem disse-me: "apresento-te o meu escritório... é aqui que trabalho"... à minha frente espraiava-se o famoso Yosemite Valley com várias quedas de àgua , cada uma com centenas de metros de altura, lagos maravilhosos, formações rochosas imponentes e florestas de sequóias com mais de 70 metros...
Deixei de sentir o frio e a neve a entranharem-se-me nos ossos... O polícia continuou... "agora, fala-me do teu escritório... é tão bonito, apelativo e desafiante como o meu?"...
Na passada semana "o meu escritório" tinha estas vistas...
E o teu? Esta semana o que vês e sentes no "teu escritório?"
Uma excelente semana!
CorteVale
O Olhar de um Observador Especial...Quem será?
Nunca saiu de São Jorge. Ninguém terá passado tanto tempo a ver, sem ser visto, a ouvir desabafos, conversas, queixas, tramóias… mesmo junto a si…
Havia quem partilhasse segredos tão perto dele que, vendo-o, não se apercebia que ele os ouvia, os entendia… não precisavam de falar para ele ficar a saber, sentindo e sofrendo tudo aquilo que sentiam e sofriam os que passavam perto de si…
Mesmo que não quisesse prestar atenção… ouvia!
Mesmo que não quisesse ver… observava!
Mesmo que não quisesse sentir… experimentava a angústia dos que desesperavam!
Mesmo quando não sentia alegria… ficava entusiasmado com a ingenuidade e a felicidade… especialmente das crianças, particularmente quando paravam perto de si!
Também a Nathalie e o Tonito, ainda crianças, partilharam os seus ingénuos planos futuros, mesmo ao pé de si… sentia que eles experimentavam uma serenidade especial quando estavam mesmo perto dele…
Ele pressentia o que eles sentiam…
Mas ele estava e está prisioneiro de si mesmo! E lá continua assim, ano atrás de ano, primavera atrás de primavera, inverno após inverno… Há quanto tempo? Não faço ideia…
Gosta particularmente de ver as crianças... ultimamente tão raras! Assustava-se com as brincadeiras perigosas, especialmente na altura das festas em que as crianças iam às canas e apanhavam as bombas dos foguetes que não rebentavam… aí sim… assustava-se… temia por elas… e assistiu impotente a vários acidentes, resultantes de brincadeiras perigosas…
Como se assustava quando – no pino do calor – as crianças mais afoitas se atiravam para dentro das presas, sem saberem nadar, espicaçadas pelos outros miúdos, muitas vezes mais velhos, mas mal formados e inconscientes…
Assistiu a muito… a tragédias… vidas levadas pelas cheias dos ribeiros, pelas enxurradas súbitas … acidentes no salta-e-pilha…bulhas por causa de… nada, discussões e insultos por causa das horas de água de rega…; também ouvia as carlotices quando se lavava a roupa nos ribeiros e se punha a corar nas pedras e silvados que bordejavam os lavadouros…
Mesmo aquilo que a sua visão não alcança é-lhe partilhado e comunicado pelos seus parentes que, como ele, estão sempre presentes nos seus locais… há muito… mas muito tempo.
Alguns parentes seus já desapareceram ou alguém os fez desaparecer precocemente… ele próprio já foi ameaçado várias vezes, mas ou porque alguém o protegeu, ou por puro golpe de sorte… lá se tem safado ao longo dos anos… muitos mesmo!
Mas não é de si que quer falar… nestes muitos, mas muitos anos de muito ver, muito sentir, muito refletir…
Quer falar das Mães… sim, das Mães de São Jorge… Tão banalizadas e ignoradas, mesmo pelas outras mulheres, mas, ao mesmo tempo elas foram e são quem dá sentido à cultura e à maneira de ser desta comunidade que, com altos e baixos, vai sobrevivendo por esta meia-encosta acima… São Jorge.
Viu mães de São Jorge darem à luz…sozinhas, não por vergonha, mas por humildade e pobreza… e não raras vezes os seus homens estavam na taberna!
Viu mães, que antes de o serem biologicamente, foram-no emocionalmente, quando, ainda crianças, de sete e oito anos, cuidavam de irmãos recém-nascidos ou com meses…
Muitas mães foram-no, sem o serem!
Viu mães irem trabalhar para as hortas, irem lavar a roupa ao ribeiro, às segundas-feiras, e levarem os seus filhos de dias ou com meses, no alguidar, no cesto ou mesmo no barleiro à cabeça…
Viu mães com os filhos ao colo e um molho de mato à cabeça…
Quando a vizinha não tinha leite materno para a sua criança, outra vizinha com um recém-nascido partilhava os seus peitos com o seu filho natural e o seu filho de leite… Chegou a ver mães que perderam o seu bebé, darem o peito ao filho da vizinha, com as lágrimas a correrem pelas faces…
Viu mães a mastigarem batata até ficar puré, a meterem a colher à boca e tirarem aquele puré e a alimentarem os seus bebés…
Viu mães a chorarem em silêncio e às escondidas porque os seus filhos foram selvaticamente agredidos na escola, ou na doutrina… mas em público sentiam-se coagidas a dizerem “só se perdem as que caem no chão…”
Viu mães serem abusadas e agredidas por homens que depois se desculpavam dizendo que não foram eles, mas… o vinho!
Viu tantas mães a economizarem e a gerirem laboriosamente casas cheias de bocas com umas notitas e algumas moedas, a maioria das vezes tiradas á socapa dos bolsos das calças de ganga dos homens toldados pelo vinho…
Viu mães irem buscar os seus homens às tabernas, sendo agredidas pelos seus e humilhadas pelos companheiros das comezainas…
Viu mães terem que fazer de parteiras consigo próprias, com as filhas, com as irmãs, com as vizinhas…
Viu mães terem de amortalhar os seus filhos roubados em tenra idade… ou já mais velhos… ou os seus pais… ou os vizinhos…
Viu mães irem a pé, em manhãs gélidas, com as crianças ao colo, carregadas de febre, até ao médico, à Panasqueira e terem que esperar horas… e muitas vezes passavam-lhes à frente os filhos deste e daquele…porque gente mais importante!
Viu mães a quererem tomar o lugar dos seus quando a Guarda os queria levar presos…
Viu mães a trabalhar como mineiros à Pesquisa das Courelas, a escombarar ao Vale-do-Muro como cavadores, a caiarem as casas como pintores…
Viu mães a cantarem no coro da Igreja, como ninguém… a fazerem filhós inigualáveis, a cozinharem as couves com feijões com um paladar único no mundo… a remendarem aquelas calças a que o filho se afeiçoara de tal modo que nem parecia que se tinham rasgado…
Sim, o nosso observador e os seus parentes têm visto mães… sim muitas mães… e elas, sempre, a seu modo, dão tudo de si, o que sabem e o que não sabem…sem pedirem nada em troca.
E partem… sim partem, para ao pé de outras mães, também das suas mães, das suas irmãs, das suas vizinhas e as outras, as que cá ficam, acompanham-nas e dão continuação ao seu legado, ao seu testemunho…
É pena que esta crónica nos seja narrada por este observador especial, com ajuda dos seus parentes, que não sendo gente, mais parecem aquela gente, que não temos tido tempo para ser… sim nós, todos nós, que fomos e seremos sempre o motivo de orgulho e a razão de ser desta energia inesgotável, imparável... as Mães de São Jorge.
CorteVale
Finalmente encontram-se.
Os dois têm o mesmo nome: José!
Ou melhor, será o reencontro, pelo menos para o Zé que partiu recentemente. Este procurou o outro Zé, que partira há muitos, muitos anos… Há mais de trinta anos que o Zé mais humilde partiu; provavelmente, há muito que terá sido esquecido por muitos que o humilharam e mesmo por aqueles que o forçaram a partir…
Mas o outro Zé, o que partiu apenas há umas semanas, bem mais alto e conhecido que o Zé, há muito desaparecido, não o esqueceu… pois já o tinha encontrado, não necessariamente a ele, mas à sua trágica história.
Há umas boas dezenas de anos… procurou-o, pelas ruas e nas memórias das gentes de São Jorge… mas as pessoas a quem perguntou pelo Zé, de São Jorge, o mais humilde, não deram qualquer resposta ao Zé, inquieto, jornalista, na altura pesquisador de memórias e afectos das comunidades e povos de Portugal…
A ida a São Jorge não foi em vão; o Zé (pre)sentiu o outro Zé, na indiferença, no ramerrame, no desconhecimento, no desenrasca, no isolamento das vidas em São Jorge…
De facto, no espírito das pessoas com quem falou, nada encontrou! Ninguém sabia quem tinha sido o Zé! Na altura concluiu que as consciências, quando estão pesadas, forçam o esquecimento…
Nessa procura que fez pelo nosso José, em dia agreste, o outro José, explorador de emoções e afectos, constatou, naturalmente,que o Sorna estava a funcionar, à Eira, para variar, carlotava-se, nas tabernas discutia-se futebol e, claro, à boca da mina falava-se do último despedimento, mais um "coitado" apanhado com um cristal escondido nas partes…
Como quase sempre, só se tratavam de agendas banais, de coisas fúteis, mas que não incomodassem… não é bonito falar de coisas sérias, ou melhor, de coisas pesadas, bem pesadas na consciência colectiva de todos nós…
Os dois José nunca se tinham visto. As fisionomias deles não são importantes, embora ambos tivessem feições secas… chupadas; o que procurou o outro era bem mais alto, enquanto o procurado, não só era mais baixo, como também andava curvado com o peso das mágoas e das tragédias que o visitaram de amiúde… demasiado amiúde para uma pessoa só, sensível e frágil…
Sim. Sem se conhecerem fisicamente as suas vidas cruzaram-se, ou melhor, um deles foi à procura do outro a… São Jorge…As pessoas daqui não lhe deram nada… Não senhor! Não, não encontrou este ilustre São-jorgense. Ilustre? Claro que sim: ilustre pelas lições de vida não vivida, pelo infortúnio que o visitou, ilustre pelo abandono a que foi votado… até na morte José foi ilustre, pelo sem sentido do motivo que o matou… também ilustre porque é o único São-jorgense que inquietou o outro José, prémio Nobel…
Mas agora os José têm todo o tempo do mundo para conversarem…
…
- Vê, além, à Ponte, a seguir àquele café? Apontava José. Sim, havia ali um pardieiro, uma casita de pedra… sim era ali que eu vivia… Com o meu menino… muito inteligente… vida tão curta e ceifada de forma tão estúpida… a sua curiosidade e a sua ingenuidade eram angélicas… Também ele foi muito magoado...
- Mas, meu bom José, porque gosta tanto deste sítio? Perguntou o José, em tempos pesquisador de emoções e culturas…
- Porque gosta tanto destas Alminhas, onde estamos sentados? Continuou a perguntar o José que há muito tempo procurou o José de São Jorge…
- Não vê, caro José, que daqui vejo o sítio onde estava a minha casinha, aqui, ao meu lado, tenho o meu menino, tenho ainda a minha mulher, que também partiu demasiado cedo e agora também o tenho a si, meu grande amigo José…
- E já viu? Aqui ao nosso lado, nestes azulejos, está contada a história de um parente meu que há muitos, muitos anos, conseguiu matar um lobo com as suas mãos, agarrando-lhe a língua… que homem corajoso…
- Esta façanha, que aconteceu lá para os lados da Cerdeira - havemos de lá ir - foi para mim uma bóia a que me agarrava nas alturas mais difíceis… E o que eu passei…
…
Quem, neste fim de tarde, de um dia de calor, mas já lusco-fusco, tivesse a serenidade, a visão clara e pura de uma criança e olhasse, a partir da Ponte, para as Alminhas brancas, lá no outro lado, veria duas breves silhuetas – os dois amigos José – entretidos em amena cavaqueira…
O humilde José explicava ao outro José, prémio Nobel, como se apanha um lobo enraivecido, com as mãos, mostrando-lhe a destreza usada pelo seu parente para, sem largar o lobo preso pela língua, tirar a navalha do bolso e ferrá-la no pescoço do lobo…
CorteVale
Crónica de Luanda… do Tonito!
É com enorme saudade e entusiasmo que acabo de ler a notícia da estadia da Nathalie em São Jorge.
Há muito, mas muito tempo que não tinha quaisquer notícias suas, minha cara Nathalie… Que pena sinto, termos passado estes anos todos sem falarmos… senti alguma mágoa nas suas palavras… também sinto que perdemos, ou melhor, que temos adormecido, dentro de nós, algo muito importante…
Também é verdade que as pessoas de quem gostamos mesmo, os verdadeiros amigos estão sempre connosco, mesmo quando passamos anos e anos sem estarmos com eles.
Ler o que a Nathalie sentiu em São Jorge fez despertar em mim uma enorme vontade de a ver, de falar consigo sobre nós e a nossa dilecta terra… essa São Jorge misteriosa que nos inquieta, nos provoca formigueiros na barriga, sempre que pensamos nela….
Ainda bem que não vendeu a casa velha…
Gostava de voltar a sentar-me em cima da arca grande, na sala de baixo…
Ah São Jorge! … Como eu gostava de estar aí, com os meus amigos de infância!
Como eu gostava de voltar a fazer um fio de amoras, ir apanhar barro azul à Cortevale, ir espreitar a mina seca da Selada, subir o nicho dos Lameiros, apanhar as canas dos foguetes da alvorada, correr à frente da música no dia da festa dos mineiros, nadar na presa das Dornas, ir deitar um papagaio, fazer um atira-pedras com uma forquilha de azinheira e borracha de mangueira velha, deitar o arco, jogar à bola à Eira, deitar o pião, jogar à guelharda, jogar ó berlinde, mas com esferas, pois os berlinde mágicos, o de cor de rubi e o que imitava o arco-iris ficavam bem escondidos no bolso das calças de sarrobeco … espreitar a pesquisa do ti Camilo, roubar figos às eiras-das-casas, ouvir o futebol à porta da taberna do t’Zé Sapateiro, ajudar a fazer hóstias e prová-las, a ver se ficaram boas, acompanhadas por um golo de Ferreirinha… e tantas, tantas outras coisas bonitas…
…
Tonito, hoje na casa dos 47 anos, sentado na esplanada do Clube dos Caçadores, mesmo ao lado do cinema ao ar livre, no Bairro Miramar, em Luanda, nesta tarde de sábado levemente abafada, Outono dentro, bebericava uma Eka, acompanhada com paracuca, enquanto deixava que o seu olhar se perdesse na imensidão do horizonte… lá em baixo, casario humilde, logo a seguir a azáfama do porto, a baía e a ilha com as suas praias e bares míticos, mesmo não sendo ilha, e… lá ao longe, o mar… era neste imenso mar de Luanda que planava com os seus pensamentos… desejando ir mar dentro…
Era contemplando este mar, mar das calemas trágicas, mas sereno, que gostava de se perder, mar dentro, absorto nestes pensamentos e desejos, em que São Jorge era o palco e ele e Nathalie eram dois miúdos com 12 anos que coravam constantemente, sempre que se encontravam, ora fugindo um do outro, cheios de vergonha e timidez, ora sentindo um desejo imenso em estarem juntos… sem falar, apenas sentindo o pulsar e o palpitar um do outro, naquele longínquo, mas tão próximo verão de 1975… sentados em cima da arca grande na sala de baixo da casa velha dos pais da Nathalie…
Tonito ainda guarda, na casa humilde da sua família da Barroca o diário, com as cartas que foi recebendo, entre os 12 e os 19 anos, de Nathalie…
Talvez nos encontremos por São Jorge e aí, prometo mostrar-lhe o meu diário, os desenhos e claro os poemas que fiz…
Várias vezes tentou desfazer-se destas memórias, mas no último instante não rasgava, nem deitava para o lume!
Tonito passou a sua adolescência entre os estudos no liceu da Covilhã, onde vivia com os pais, e as férias na Barroca e em São Jorge… Era para São Jorge que, no verão, Tonito puxava os pais, sempre na esperança de se encontrar com Nathalie, e onde tinham a casita dos avós paternos… mas os pais preferiam e insistiam quase sempre em irem para a Barroca, pois a família da mãe era mais numerosa e a casa que aí tinham era bem mais confortável que o pardieiro de Cebola, como lhe chamava a mãe, para não falar na estrada, bem mais demorada e perigosa…
Tonito, como quase sempre, decidiu, de repente, ir para a Força Aérea; aos 20 anos já marchava na OTA … tirou a especialidade de navegação aérea…
Por várias vezes esteve quase a partir para Paris… mas refreava-se no último instante, pois sabia que o pai de Nathalie não via com bons olhos aquele arremedo de namorico, como lhe chamava e achava que a sua filha merecia melhor partido …
Tonito hesitou muitas vezes… chegou a estar em Paris, sem Nathalie saber, para combinar com ela e “fugirem” para Portugal… Mas refreou-se, pois sabia que Nathalie não queria chocar o pai… e o tempo foi passando…
Tonito investiu como ninguém na sua profissão; desde os 25 anos e após uma sólida formação e experiência no Aeroporto de Lisboa, é um dos mais experientes controladores de tráfego aéreo… é o que tem feito desde aí… já trabalhou em muitos aeroportos e, desde há 2 anos, está a trabalhar como controlador de tráfego aéreo em Angola, dividindo-se entre a operação e o treino de novos controladores…
Só com uma profissão destas é que conseguia ter a vida confortável que tem, pois vive na cidade mais cara do mundo… Luanda!
Tonito nunca casou… tem passado a vida a saltitar de torre de controlo em torre de controlo… também reconhece que nunca encontrou ninguém que fosse capaz de tirar Nathalie do seu pensamento…
Na verdade o que o impede de concretizar este impulso de ver Nathalie? Se quiser consegue viajar no cockpit de qualquer voo comercial, pois conhece praticamente todos os comandantes que aterram em Luanda… aliás ficam quase sempre no hotel Alvalade, onde Tonito costuma almoçar com muitos deles…
Talvez esteja na altura de dar uma saltada a Paris!....
Será que Nathalie ia gostar da surpresa?
Também é verdade que se avizinha a festa de São Jorge…
Será que Nathalie estará por lá nesta altura?
CorteVale
Nathalie experimenta uma enorme saudade de S. Jorge.
É sexta-feira santa. Está sentada nos degraus de laje do Cristo-Rei, à Capela e olha com enorme nostalgia para o meio do Povo.
Aqui passou os últimos quatro dias. Tantas coisas que sentiu, viu e revisitou… Por um lado sente que já faz parte de S. Jorge e que já cá vive há muitos, muitos dias.
Não quer partir, sente uma enorme tristeza a invadi-la…
Lembra-se de seu pai, que partia sempre de S. Jorge com o coração apertado e os olhos andavam marejados de lágrimas, lá por Paris por muitos dias, depois da saída de S. Jorge. Era sempre assim… Agora Nathalie estava a sentir o mesmo aperto, o mesmo peso no estômago!...
Mas tem de partir! Prometera à sua mãe que passaria com ela a Páscoa! Tinha-a convencido a subir à Torre Eiffel, onde nunca o seu pai a conseguira levar e iriam ver o São Jorge de Rafael, pequenino quadro, que se pode contemplar no Louvre, mesmo ao lado da sala onde habita o quadro mais visitado de todo o mundo… A Gioconda.
Nathalie tem mesmo de partir! É meio-dia e tem que estar no Aeroporto de Lisboa às 7h, para apanhar o avião para Paris…
A sua mãe compreendeu a razão porque não vendeu a casa de S. Jorge. No fundo até ficou orgulhosa com a atitude de Nathalie.
- Não precisas de te explicar, filha, eu fazia o mesmo… há coisas que não se podem vender; quando muito, só mesmo em extrema necessidade…
Os vizinhos, embora mostrassem pena, também tinham compreendido. Um deles já tinha prometido aos filhos e netos que se iriam juntar todos em S. Jorge, neste verão! Nathalie prometeu-lhe que lhe emprestava a casa, por uma ou duas semanas, quando não precisasse… Este vizinho também acabou por lhe agradecer, pois sentia que poderia cumprir a sua promessa.
…
O dia estava bonito. É sempre assim. Quando partimos é quando tudo nos prende e só sentimos vontade de adiar ou nunca mais partir…
Estava Nathalie embrulhada nos seus pensamentos, descansando o olhar neste céu tão azul, cortado em dois pelo rasto de um avião, lá no alto; céu como este não há em mais lado nenhum! Sentia os cheiros do mato a florir, ouvia o chilrear dos pássaros, mesmo ali nas árvores da Capela… e as flores de cantarinha mesmo ali à frente das escaleiras do Cristo-Rei… A natureza explodia e invadia todos os poros de Nathalie…
Ainda lhe doíam os pés e as pernas, com tanto que andou por S. Jorge naqueles dias…
Reviu todos os passeios que deu…
Julgava que se perderia, mas coisa estranha, sempre que se aventurava por qualquer quelha, qualquer caminho, pressentia sempre que já ali tinha passado e surgiam-lhe as imagens e as emoções que viu e sentiu, quando esteve, naquelas férias grandes, em S. Jorge, nos seus 12 anos…
Tudo tinha começado, na segunda-feira, à tarde, na cozinha da casa velha… continuou na sala de baixo, quando brotaram os seus sentimentos escondidos pelo Tonito!...
Olhou para a Igreja, mesmo à sua frente e reviu o primeiro grande passeio que deu…
Desceu, ao lado da casa do Sr. Padre, ao Vale e subiu à Abesseira; pelo mato foi até debaixo do grande castanheiro; no Ribeiro-Souto reviu e imaginou as mulheres a lavarem a roupa, um pouco mais acima da presa cheia de água esbranquiçada pela espuma do sabão e quase as ouvia a cantar e a cochichar os apartes das vidas das vizinhas…
Subiu, com esforço, à canada e, lá no alto, ofegante, virou à direita e descobriu que tinha estado sentada com o Tonito debaixo da enorme amoreira… ele oferecera-lhe um fio de amoras, que ela pôs como colar e jurou intimamente guardá-lo para toda a vida…
Esfolou um joelho num tanganho, a descer para a Archã, onde ainda se vêem os resultados da destruição, provocados por uma grande cheia; do alto da parede deste chão cheio de cascalho, do ribeiro que transbordou, imaginou o poço onde as mulheres da Costa iam lavar a roupa… e a água esbranquiçada cheia de alfaiates e bacorinhas…
Subiu à Façoute, passou debaixo de castanheiros arruinados, rompeu a camisa nas mouteiras e giestas secas, enfarruscou-se pelo mato que a cobria e, sem querer, foi ter ao caminho que vai da Cortevale para as Aradas…
Tentou subir, mas não encontrou a vereda da mina da Brouca e, sentindo-se já bastante cansada, desceu até à suave planura da Cortevale… descansou, refrescou-se no tanque que tem um palheiro, construído por cima e aí gozou, por largos minutos o aprazível silêncio do lugar… quebrado aqui e ali por um cuco que se anunciava… ainda tentou dar uma cambalhota a ver se descobria alguma coisa, pois foi a primeira vez que ouviu um cuco em muitos, muitos anos…
Regressou pela Barroquina da Cal, cumprimentou as espantadas vizinhas da Costa que se silenciaram à sua passagem… ouvindo-as depois cochichar, atrás de si… quem é??? E uma outra voz cochichava… atão não vês q’ié a praf’ssora, f’lha da t’iá Rosália da França?!!!
Este foi o primeiro de longos passeios em que redescobriu emoções, vivências infantis e afectos escondidos…
Foi ao Picoto, mas de carro, deslumbrou-se com as paisagens e desceu à Covanca, esteve na barragem de Santa Luzia, parou à Portela e sonhou voar sobre S. Jorge; passou pelo nicho dos Lameiros, subiu à mina da Selada; aí, ainda experimentou andar uns metros dentro da mina seca… Redescobriu a fraga do Penico e estalou os dentes a beber a água fria, à Fontanheira… Passou pelo Pombal, essa cascata de casas, apreciou as nesgas de S. Jorge que se descobrem por entre as casas do Pombal…
Revisitou casas de pedra e barro vermelho e lembrou-se de humildes casinhas, lavadas de fresco, a cheirar a rosmaninho e decoradas com enfeites de jornais colados, a farinha e água, nos caibros escurecidos… a anunciar e abrir portas à visita pascal…
Boas festas acompanhadas por Deus, Nosso Senhor, Aleluia, Aleluia…
…
Antes de entrar no carro, parado no largo das festas da Capela, e dizer adeus a S. Jorge, ainda se lembrou e trauteou parte do hino de S. Jorge, mas em versão namoradeira…
“São Jorge oh minha terra
Tens ao lado a capelinha
Onde as moças vão namorar
Nos domingos à tardinha”
Claro que iria voltar logo que pudesse a S. Jorge…
Jurou a si própria que sempre que conseguisse juntar uma semana de férias, voltaria à procura de si, do seu passado, das suas memórias e claro dos seus afectos futuros…
CorteVale
NATHALIE (RE)VISITA A CASA VELHA DE S. JORGE
Nathalie estava, pela quarta vez, em São Jorge!
Lembrava-se, muito vagamente, da primeira vez que tinha estado em São Jorge!
Não admira; não teria mais de 8 anos quando, corria o ano de 1971, os pais, emigrantes em França, nos arredores de Paris, a trouxeram a conhecer as raízes da família do pai e os sítios onde este tinha passado a sua infância e adolescência.
Tem imagens muito vagas daquela estadia, embora hoje sinta alguns locais, as caras e os cheiros com alguma familiaridade…
Não se esquece dos dias escaldantes e das noites quentes da festa dos mineiros de 1971… com muitos vizinhos sentados às portas de casa, à fresca, a conversarem muito alegres e com uma entoação estranha… Recorda, vagamente, os temas das conversas… as mobílias das casas novas, os apartamentos que se compraram na Covilhã, no Fundão… o dinheirão que os filhos gastavam nos estudos… o desemprego nas minas, o raio da silicose!...
A terceira vez que veio a S. Jorge, há 10 anos, foi precipitada pela súbita morte do pai, em Paris e, na sequência das partilhas e da herança, foi obrigada a vir regularizar a situação de alguns bens que a família possuía na zona.
Hoje, já na casa dos 47 anos, Nathalie, uma excelente professora de biologia, há muitos anos colocada num liceu em Paris, ainda não acredita, muito bem, porque está em S. Jorge.
Tudo se precipitou umas semanas antes desta Páscoa…
Por um lado o reitor do Liceu sugeriu-lhe que gozasse os 10 dias úteis de férias antigas, nas férias escolares da Páscoa de 2010, dispensando-a assim das suas actividades de coordenação pedagógica.
Quando se preparava para marcar uns dias numa praia longínqua, numa das ilhas paradisíacas da Polinésia francesa, onde ia com alguma regularidade, para carregar baterias, eis que a sua mãe lhe telefona aflita, por causa do desassossego que a casa velha de S. Jorge lhe andava a causar…
De facto, os vizinhos de S. Jorge não lhe davam descanso desde há uns meses para cá. Todas as semanas choviam telefonemas de São Jorge na residência, onde Rosália, a mãe de Nathalie, vivia desde a súbita morte do marido, a pressionarem-na para vender a casa velha de São Jorge…
Desde a morte do pai que mãe de Nathalie não andava bem. Na realidade nunca aceitou a sua perda e vivia num permanente sofrimento e estado de confusão, que os inúmeros internamentos não solucionaram. Com 68 anos, a mãe de Nathalie era pouco autónoma e vivia numa residência comunitária de excelente qualidade, com serviços de proximidade e cuidados clínicos permanentes, nas proximidades de Versailles.
Nathalie visitava a mãe duas ou três vezes por semana e sempre que o tempo o permitia iam visitar o palácio, especialmente os seus jardins. Nestes passeios conseguia ver felicidade no rosto da mãe, sempre que esta, entusiasmada, lhe explicava os detalhes das paixões e das lutas palacianas presenciadas por aquelas imponentes paredes; nestes passeios, tomavam o comboiozinho nas traseiras do palácio, levando-as a visitar o enorme parque… apeavam-se sempre junto ao grande lago frondoso, onde lanchavam e alugavam um barco a remos e gostavam de remar até ao meio do lago e ficar aí, por largos minutos a sentirem o silêncio das águas calmas, fazendo-as sentirem-se mais próximas. Estes momentos também lhes refrescavam os afectos e as memórias agradáveis… Depois tomavam um chá na esplanada debruçada sobre o lago, deleitando-se a observarem as crianças em correria ou a andarem de bicicleta e, quando a mãe mostrava sinais de fadiga, retomavam o comboizinho até ao palácio; andavam uns minutos a pé e Nathalie despedia-se da mãe, depois de a deixar aconchegada no seu quarto, na residência de idosos…
...
Nathalie deu consigo a alugar um carro no Aeroporto de Lisboa, depois da viagem agitada, num avião da TAP, repleto de alegres emigrantes, carregados de prendas e lembranças, e a viajar para S. Jorge, debaixo de um temporal, no domingo de ramos.
Pernoitou num hotel no Fundão e na 2ª f., ficou admirada com a azáfama matinal do mercado, por onde deambulou, descobrindo calçado a 1 euro, enxovais completos arrematados a 50 e estranhas cherovias a concorrerem com os peixinhos da horta…por entre anúncios do tipo “ó freguesa, compre aqui … é mais fresquinho e mais barato”, declamados entre uma bátega de chuva e um vento gelado que cortava a ponta do nariz.
Depois de um almoço frugal, pôs-se a caminho de S. Jorge, onde chegou pelas 3 da tarde.
Obtida a chave da casa velha, junto da vizinha idosa, a quem a casa estava entregue e que sabia da sua vinda e, depois de muitas festas e beijos à “m’nha Natalita”, foi dar uma vista de olhos pela casa antes de ir falar com os vizinhos, paredes meias com a casa velha, e resolver rapidamente este assunto da casa, a ver se acabavam de vez os telefonemas que vinham desestabilizando a sua mãe, lá nos arredores de Paris…
Ainda por cima dormira mal no Fundão. Não que o hotel e a cama não fossem acolhedores.
Ao folhear o livro de Saramago “Viagens na Minha Terra”, que o serviço do hotel tinha no quarto, tomou contacto com a trágica história vivida em S. Jorge “O fantasma de José Júnior”…
Sentada no tabuão, carcomido pelo bicho da madeira e enfarruscado pelo lume, tantas e tantas vezes aceso na pedra, também ela crestada, que repousava no centro da cozinha, levantou os olhos para a pilheira, à sua frente, onde repousavam testos velhos, uma gadanha enferrujada, uma candeia de azeite apagada há demasiado tempo…
Mas ali, experimentou pela primeira vez, desde há muito tempo uma profunda paz interior. Uma sensação especial de calor e um silêncio abraçaram-na por largos momentos… Ali ao lado da cozinha morava uma cantareira antiga e ao fundo do sobrado, numa mistura de forro e dispensa encontrou, no meio de malas e trastes velhos, uma mesa feita duma caixa da pólvora das minas, umas pinhas velhas bem secas, umas torgas quase a desfazerem-se e até umas pernadas de oliveira e castanheiro…
Acendeu o lume e experimentou um calor acolhedor como há muito tempo não sentia e deu consigo a olhar para o longo tabuão, à roda do lume, a olhar a porta da cozinha com janelo, o assento de cortiço mesmo ao lado da panela de ferro enferrujada e na pilheira, uma ráfia a desfazer-se, mas que ainda conservava uma mão-cheia de sarpão seco.
Deu consigo a imaginar o seu pai, os seus avós, os bisavós paternos e tios a conversarem alegremente à volta do lume e a comerem as couves com feijões, duma grande travessa, posta na pequena mesa e decorada com rodelas de chouriça de lombo, cortada em 12 bocados, para as 12 bocas que respiravam naquela cozinha…
Sobressaltou-se ao ouvir uma voz … “Toma! Este bocado de chouriço é para ti, minha netinha!”
Nathalie experimentou uma sensação de pena quando se tentou concentrar na sua missão: tinha vindo a S. Jorge para vender a casa velha a um dos vizinhos que queriam alargar as suas casas e, por isso, não davam descanso à mãe, lá em Versailles!
Mas a casa velha era muito mais que uma casa… estava cheia de memórias, de afectos… Nas duas horas que passara em S. Jorge, desde que entrara na casa velha, Nathalie não deixara de sentir uma enorme explosão de emoções, recordações que julgara perdidas para sempre.
Ao entrar na sala grande do andar de baixo teve um sobressalto… A sala parecia bem mais pequena que a das suas memórias de criança. Sentiu um aperto no coração ao ver a arca grande de carvalho, exactamente ao lado dos gavetões de parede… estava tudo no mesmo sítio… foi sentada na arca, aos 12 anos, na sua segunda estadia em S. Jorge e de mãos dadas com o Tonito, menino dos olhos grandes e negros, que trocou o primeiro beijo e jurou amor eterno!
De repente sentiu uma impaciência urgente em saber o que era feito do Tonito… Durante largos anos trocaram cartas, prometeram visitar-se, irem viver um para o pé do outro, mas tal nunca acontecera… Porquê? Nathalie não encontra resposta… Será que esta é uma das razões porque nunca casou e se dedicou de corpo e alma à sua vocação de professora?
Apeteceu-lhe sair para a rua e perguntar pelo Tonito. Refreou-se. Numa das últimas cartas que trocaram e já perto dos 20 anos, ele anunciava que ia para a tropa…
A casa velha estava a destapar-lhe um vulcão de emoções. Cada segundo que passava presenteava Nathalie com uma torrente enorme de recordações, histórias contadas pelos avós, pelo pai…
Não, não podia vender a casa. Neste momento tinha a certeza que vender a casa seria amputar uma parte de si, vender e destruir recordações, memórias da sua família, seria matar a sua identidade, a sua referência cultural…
Está decidido. Não vendo!
Mais, tenho que a preservar, restaurar e escrever todas estas histórias, memórias…
Sim, a casa velha vai perdurar…
Continuará a viver dentro de mim!
CorteVale
CorteVale
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