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CAMINHO das PEDRAS ...

DA MINHA LÍNGUA VÊ-SE O MAR. DA MINHA LÍNGUA OUVE-SE O SEU RUMOR, COMO DA DE OUTROS SE OUVIRÁ A FLORESTA OU O SILÊNCIO DO DESERTO. POR ISSO A VOZ DO MAR FOI A NOSSA INQUIETAÇÃO. Vergílio Ferreira

CAMINHO das PEDRAS ...

DA MINHA LÍNGUA VÊ-SE O MAR. DA MINHA LÍNGUA OUVE-SE O SEU RUMOR, COMO DA DE OUTROS SE OUVIRÁ A FLORESTA OU O SILÊNCIO DO DESERTO. POR ISSO A VOZ DO MAR FOI A NOSSA INQUIETAÇÃO. Vergílio Ferreira

01
Nov09

La Union ou... A união faz a força!


CorteVale

 

La Union!
Terra mineira… Ou melhor, terra que já foi mineira, mas preserva um ar arrumado, limpo… Percebe-se que respeita alguns belos edifícios com história, transmitindo-nos a impressão de que este lugar tem personalidade própria.
Desconheço por completo a sua história factual, oficial, mas também não me esforço por conhecê-la… Estou mais atento às impressões que me deixou nas dezenas de vezes que a atravessei e uma ou outra vez que por lá parei entre os anos 1994 e 2001…
É impressionante como uma terra com locais interessantes e edifícios bonitos consegue manter estes sinais saudáveis quando tudo à sua volta é destruição…
Será que as pessoas de La Union se uniram e lutaram contra a adversidade? O determinismo que transforma muitos locais semelhantes a este em sítios fantasma parece não ter vingado em La Union…terra que acaba por ser bonita, quase acolhedora e se encontra cercada por serranias que jazem mortas, pois foram esventradas e sugadas durante séculos e hoje transpiram um silêncio de funeral… invade-me uma tristeza de morte quando revejo aquelas montanhas que parecem ter sido escombaradas por mãos de gigantes!
As largas dezenas de quilómetros que cercam La Union, tanto do lado de Cartagena, como do lado da Manga del Mar Menor, quer ainda do lado de Portman mostram ruínas aqui, desertos poluídos acolá, lagunas de água (será água?) vermelha de sangue…
Parecendo quase impossível imaginar a existência de La Union ali tão perto… Mas a cidadezinha limpa e soalheira continua lá!...
Até o jipe que nunca se negava a qualquer percurso parecia soluçar nestas paragens, parecia perder a capacidade de tracção nos demorados quilómetros de estradas secundárias rodeadas de destruição, em torno de La Union e que vão de Cartagena, com o sua imponente base naval e terminal petrolífero em cima do Mediterrâneo, até à animada estância balnear da Manga del Mar Menor, na Costa Caliente, que se veste de trajes fantasmagóricos no inverno e transborda de veraneantes e animação no estio, mas sempre a espreguiçar-se pela longa língua de areia pejada de empreendimentos turísticos que parecem entrar pelo Mediterrâneo adentro até se perderem no horizonte azul…
Que choque de imagens e contraste de paisagens, a cerca de uma centena de quilómetros de Múrcia, capital de La Huerta de Espanha, debruçada sobre o Mediterrâneo.
É estranha esta sensação de um silêncio forçado que brota destas montanhas mortas. Há sítios que parecem cemitérios, por onde se passeou uma onda predadora enorme que matou tudo à sua passagem, tal a voragem insaciável do dito desenvolvimento humano… Só as mentes menos escrupulosas e convenientemente ingénuas se apaziguarão com as desculpas da riqueza proporcionada pelo minerais, seja o ferro, carvão, estanho ou volfrâmio extraídos nestes lugares …
Saltando cerca de mil quilómetros para ocidente…
Embora o choque não seja tão forte, sinto o mesmo quando deambulo pelo Vale de Ermida, onde as torvas ainda estão à espreita para sugar quem distraidamente passe por ali e os desmontes do salta-e-pilha nos observam disfarçados pelo mato vestido de carquejas e mouteiras . Vejo o mesmo nos aterros e tanques do lodo ao Vale-do-Muro, nas montanhas artificiais de escórias que se perfilam na entrada da Barroca Grande, para quem vem do Zêzere… Sinto o mesmo em Urgeiriça, em Aljustrel, em Jales, São Domingos e em tantos, tantos lugares geograficamente longínquos, mas tão próximos, pelas imagens de matança e saque que nos transmitem!
Mas La Union parece ter sabido resistir… sobreviver… De todos estes lugares La Union parece demonstrar que foi a força da união das suas gentes que garantiu a sobrevivência de La Union, pois tudo à sua volta concorre para a sua não existência…
Quem apenas conhece a zona turística da Manga del Mar Menor – a maioria das pessoas que buscam estas paragens no verão - não imagina que a menos de duas dezenas de quilómetros existe um território sugado, qual paisagem estéril, quieta e nos sussurra ao ouvido “que estás aqui a fazer? Não vês que já nada tenho para te dar?”
No entanto, La Union, cidadezinha arrumadinha no meio deste caos parece ir sobrevivendo, aparentemente alheada a esta agressão ambiental…
Puro engano… Também a vida e as pessoas de La Union são marcadas por agressões, desatinos, ambições desmedidas, por predadores sem escrúpulos que sugam tudo à sua passagem…
É por isso que poderia estar a falar da vida e das pessoas das minas da Urgeiriça ou de Aljustrel ou de São Domingos ou… porque não, das Minas da Panasqueira…
Esta crónica de La Union poderia ter acontecido em qualquer outro lugar mineiro…
Vamos situar estes acontecimentos junto à entrada do Mercado Público de La Union, há muitos, muitos anos… na década de 60 do século passado…
 
 D. Garzon, assim era tratado pelas humildes famílias mineiras de La Union, passeava-se no seu enorme Buick, em todas as tardes de domingo, pelas localidades mineiras que naquela altura rodeavam Cartagena, onde vivia. Trabalhava no hospital local, hospital típico duma região mineira, especializado nas doenças das minas. Garzon não passava de um subchefe da secretaria do dito hospital.
Desenvolvera, no entanto, ao longo dos anos um faro canino apuradíssimo para intermediar de forma manhosa e sub-reptícia todas as necessidades e relações das famílias mineiras com o hospital local… pois todos os processos clínicos lhe passavam pelas mãos… desde a saúde, ou melhor, a falta de saúde do mineiro cheio de lesões ósseas e com os pulmões a desfazerem-se, até àquela mãe que acabara de ter uma criança e não tinha leite, precisando da receita para a lata de leite em pó que tinha de aviar na farmácia do hospital, passando por todas as situações que precisavam de tratar dos papéis para o seguro poder pagar qualquer coisa… fossem medicamentos, operações, reformas, etc…
D. Garzon conseguira instalar-se como o intermediário imprescindível de todos os cuidados de saúde transformando os direitos das pessoas em favores que prestava à humilde e ingénua população…
Se as explorações mineiras sugavam a saúde dos mineiros, logo surgia D. Garzon a sugar-lhes os parcos bens e recursos, vendendo-lhe bem caro os cuidados a que tinham direito graciosamente…
Era preciso marcar uma consulta? Sem falar com D. Garzon não se conseguiria nada antes de meio ano… Aviar a receita? Na farmácia perguntavam se já tinha o visto de D. Garzon. Fazer aquelas análises ou fazer a chapa aos pulmões que o médico tinha pedido? D. Garzon já tinha passado a ficha de marcação?
De facto D. Garzon tinha-se transformado num enorme polvo gelatinoso, com longos tentáculos que sugavam tudo e todos… Alternava entre um ar beato e rastejante quando tinha que falar com os médicos, directores ou alguém suficientemente importante para ele granjear favores que depois vendia com elevadíssimos juros ao mexilhão necessitado, apresentando-se a estes sempre altivo, com fala grossa e ameaçadora, que foi muito difícil… que teve de pagar e bem, tomando de ponta aqueles que hesitassem ou titubeassem algumas palavras sobre direitos ou dessem a entender quererem dirigir-se directamente acima dele.
A casa de D. Garzon em Cartagena era das mais confortáveis, rivalizando com a do comandante do porto e a do comandante da base naval, estando uns furos bem acima da do director do hospital e do bonito solar do engenheiro chefe da principal mina de La Union…
Como lhe convinha D. Garzon procurava não dar demasiado nas vistas e meticulosamente punha a circular histórias sobre uma tia rica de Puerto Lumbreras, onde nascera, que lhe deixara umas propriedades e algum dinheiro ou combinava com a mulher que esta se descaísse na igreja, onde era catequista, sobre grossos donativos dados à casa do órfão, ao centro de idosos, ou mesmo ao clube de futebol, mas habitualmente multiplicados por cem…
D. Garzon seleccionava cirurgicamente os seus relacionamentos e amizades…
O enorme Buick que conduzia tinha-lhe sido vendido por um capitão de-mar-e-guerra americano que tinha passado uns bons cinco anos na base naval de Cartagena, a treinar e a passar o comando de um porta-aviões para a marinha espanhola… Quando este americano desembarcou em Cartagena já tinha alguém preocupado com ele. D. Garzon arranjara-lhe, não só uma bela casa para a família, como tratou da sua integração na vida social local. O comandante americano e respectiva família jantavam praticamente todos os fins-de-semana em casa de D. Garzon, passando a vida a gabar-lhe os dotes da esposa, excelente cozinheira, para além de catequista.
A casa de D. Garzon tinha fama de ter o melhor pescado, o melhor jamon, o melhor vinho, o melhor cabrito… para não falar do recheio e do conforto que aí se respirava. Como sempre D. Garzon, quando os convidados lhe admiravam tamanho bem-estar, humilde e beatificamente comentava que devia tudo a Deus, pois se considerava um homem de sorte, com saúde e repetia a história da tia rica que se tinha finado lá na terra e lhe deixara o seu pé-de-meia…
Quinzenalmente, aos domingos à tarde, o enorme Buick estacionava em lugar praticamente reservado, num local discreto, mesmo à sombra do Mercado Público de La Union e com o enorme porta-bagagem destrancado.
Enquanto D. Garzon ia de casa em casa petiscando, recolhendo envelopes de pagamento dos serviços prestados e dizendo sempre que tinha sido muito difícil, que tinha pago isto e aquilo ou, quando a cunha ainda não tinha funcionado ou mesmo querendo fazer render o peixe, insinuava que o jamon pata preta oferecido anteriormente pela vítima tinha sido gabado pelo Sr. Doutor que ia fazer o jeito… mas que estava à espera do outro jamon, pois o porco não era coxo, pois não? gracejava D. Garzon!... Ali, mais à frente, gabava o vinho de Jumilla ou os enchidos… dizendo sempre que estava quase marcado aquele exame que era preciso ir fazer a Múrcia ou mesmo a Albacete…
Quase sempre já lusco-fusco, D. Garzon despedia-se das suas vítimas e esperançosos dos seus favores e antes de entrar no seu enorme Buick abria a bagageira e sorria ao ver a quantidade de cabazes, sacas, caixas… tudo cheio de garrafas do melhor vinho, ou de enchidos, presuntos pata negra, frutas, peixes, cabritos, tecidos de seda, excelentes lãs, etc., etc. …
Todos estes “presentes” tinham pequenas tabuletas de madeira, identificando os ofertantes… D. Garzon sorria de satisfação… olhando tamanha colheita, dando pancadinhas na enorme barriga atestada com o melhor e sentindo junto ao coração os envelopes carregados de notas de 500 pesetas…
Claro que muitos destes enchidos e presuntos eram convertidos em pesetas, já que o seu amigo Juan, dono do armazém de mantimentos das minas, lhe pagava bom dinheiro por eles…
Era sempre assim… sábados e domingos D. Garzon fazia a sua “visita” a mais de seis aldeias e vilas, onde ponteava La Union…
 
A mulher bem tentou acalmá-lo, mas Manolo estava enraivecido… e com razão!
Depois de ter dado um grande saco de enchidos, uma caixa de vinho de Jumilla e um presunto a D. Garzon, para não falar das 2000 pesetas que já tinha entregue para o operador, a ver se ele conseguia marcar a operação à perna do seu filho, para não ficar aleijado para toda a vida, ainda teve que ouvir daquele parasita, enquanto lhe comia a melhor comida que tinha em casa, que o doutor operador tinha muito que fazer, que estava muito difícil, que era preciso mais dinheiro…
Ainda por cima tinha sabido que o presunto que tinha comprado e oferecido a D. Garzon tinha voltado ao armazém… Que desplante e falta de respeito… Vender, o jamon oferecido, ao mesmo armazém onde Manolo o tinha comprado…e para cúmulo, ainda lhe perguntou se o porco não tinha outro presunto!
Isto não pode ficar assim!
Tem calma Manolo, desesperava a mulher, tentando serenar a fúria do marido.
 
 Quinze dias depois e como sempre o Buick lá estava parado, no sítio do costume e, para não variar D. Garzon lá ia de casa em casa esbragando o melhor comer que os da casa não provavam, recolhendo os envelopes, dizendo que a coisa se arranjaria, mas que está cada vez mais difícil e as cestas e cabazes a carregarem o enorme porta-bagagem do Buick…
Como sempre, lusco-fusco, D. Garzon, bem aviado, com o bolso cheio de envelopes, antes de se meter no carro, abre o porta-bagagem e…
Que é isto?!!!
O cheiro nauseabundo empestava completamente o seu Buick imaculadamente limpo…
Ao tocar com a mão numa saca, ficou cheio de raiva, ao sujar-se numa enorme taleigada de tripas de vaca a escorrerem trampa por todo o lado…
D. Garzon, a tremer de raiva, meteu-se no carro e partiu vertiginosamente de La Union…
 
Manolo e dois amigos de confiança, também espoliados por D. Garzon, tinham-se vingado… Minutos antes de D. Garzon chegar ao carro, retiraram do porta-bagagem as cestas, sacas, cabazes e barleiros bem recheados e, em seu lugar, colocaram as tripas e outras vísceras podres de animais (que pacientemente recolheram e armazenaram em local seguro, durante a quinzena anterior).
Na madrugada de segunda-feira todos as pessoas de La Union que tinham ido colocar prendas no Buick ficaram surpreendidas, já que ao abrirem a porta da rua viram aí depositados os seus bens com uma folha onde estava escrito
 
EM LA UNION, A UNIÃO FAZ A FORÇA!”
 
Só cerca de três meses depois é que o Buick foi visto em La Union…
Estava estacionado bem longe do Mercado Público e diz, quem viu, que D. Garzon saiu do carro apressado e, antes de entrar na casa que ia visitar, confirmou por três vezes que o porta-bagagem estava mesmo trancado!

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