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CAMINHO das PEDRAS ...

DA MINHA LÍNGUA VÊ-SE O MAR. DA MINHA LÍNGUA OUVE-SE O SEU RUMOR, COMO DA DE OUTROS SE OUVIRÁ A FLORESTA OU O SILÊNCIO DO DESERTO. POR ISSO A VOZ DO MAR FOI A NOSSA INQUIETAÇÃO. Vergílio Ferreira

CAMINHO das PEDRAS ...

DA MINHA LÍNGUA VÊ-SE O MAR. DA MINHA LÍNGUA OUVE-SE O SEU RUMOR, COMO DA DE OUTROS SE OUVIRÁ A FLORESTA OU O SILÊNCIO DO DESERTO. POR ISSO A VOZ DO MAR FOI A NOSSA INQUIETAÇÃO. Vergílio Ferreira

04
Jan09

Quem acode a São Jorge?


CorteVale

 

 

São Jorge está a morrer! Quem lhe acode?

 

Não é de agora. Há muitos anos que vemos São Jorge a definhar, a perder o seu fulgor, dinamismo, iniciativas… as gentes são cada vez menos, os idosos predominam e, o mais preocupante, começa a instalar-se uma crença pessimista de que não há nada a fazer, isto é mesmo assim…
Já teve grupos de teatro, uma equipa de futebol prestigiada, um rancho infantil, um club cross, entre outras manifestações culturais de uma comunidade viva…
Os escuteiros parece que estão por um fio… se é que não acabaram já, o Estrela da Serra parece que está em “coma profundo” há bastante tempo…
O espaço museológico não mostra sinais de vida…
Entretanto os monumentos vivos da cultura são-jorgense – as pessoas mais idosas - vão-nos deixando e vai-se apagando e perdendo a essência de São Jorge: a sua CULTURA, os seus hábitos e modos de vida, os seus valores e toda a história que dá sentido e explica porque existe uma Comunidade neste lugar…
Alguém registou a imensa sabedoria sobre chás e mezinhas que a Ti Barata divulgava a todos os que se queixassem de alguma maleita?
As inúmeras histórias e incidentes do salta-e-pilha onde estão narradas?
Alguém deu continuidade ao excelente levantamento e tentativa de interpretação do Códice de São Jorge, realizado há uns bons anos pelo Dr. Júlio César Baptista? (conto voltar a este tema brevemente!).
Muitos dos marcos históricos da vida das Minas foram protagonizados por são-jorgenses… Onde estarão estes factos documentados?
Os saberes sobre as Regadias, a construção comunitária das presas, a partilha de horas de água estarão narrados? Onde?
O quotidiano dos inúmeros moinhos de água estará documentado?
O forno comunitário, as responsabilidades das forneiras, as regras da sua utilização conhecem-se? Quem as descreve?
Os lagares que existiram, o fabrico artesanal do azeite e as famosas couvadas aí confeccionadas farão parte das memórias de quem? Ainda se poderão localizar esses engenhos humanos?
Os pastores, que tão bem tocavam realejo e as suas histórias sobre lobos, animais mágicos, cobrões, sobre as aves de rapina que roubavam cabritos… os lobisomens que apareciam do meio do sapouch!
O ritual da matança do porco que era aliciado para fora do curral com uma cesta a chocalhar milho, acompanhada de expressões carinhosas: “fcá, fcá, fcá ... croch, croch, croch…!
As courelas escombaradas e cavadas  por ranchos de homens e mulheres… as debulhas do milho… os ganhões e os carros de bois a chiarem dos Cabecinhos aos Lameiros!...
Bom, nem tudo estará esquecido ou mesmo perdido e muito poderá ser registado e narrado… depende apenas de nós!
 Registe-se o dinamismo da banda filarmónica e o fulgor das iniciativas da comunidade são-jorgense em Dusseldorf, Alemanha…
Existem ainda actividades e manifestações de cariz religioso em torno da Igreja que ainda vão mostrando algum dinamismo e dedicação, embora a idade média da maioria dos devotos e praticantes deixe adivinhar que, se nada for feito, em breve poderão acontecer rupturas e paragens nestas actividades…
A Sagrada Família ainda é visita regular das nossas casas, os altifalantes da Igreja ainda ecoam as liturgias, o sino da igreja ainda vai dando horas mais ou menos certas, o que revela vida e crença!
A fogueira do Natal esteve à Eira e terá sobrevivido alguns dias, embora tenha perdido o fulgor de antanho em que – contam os mais velhos – durava até aos Reis??!!!
O ligeiro nevão que nos visitou deixou-a (à fogueira de Natal) neste mísero estado… embora já tivesse perdido as brasas há algum tempo e as chamas terão sido mesmo breves…
Felizmente que a Banda Filarmónica continua a pulsar… apesar das dificuldades!
Entre o Natal e o Ano Novo – pelos dias do nevão em São Jorge – tive oportunidade de ouvi-la em tarde carregada pelo “sapouch” que cobria boa parte de São Jorge e, presumo que em ensaio, até o “parabéns a você” saiu bem afinado e em aceleração final, como é usual fazer-se nas ditas comemorações.
À(o) aniversariante os meus votos para que continue a demonstrar ao vivo a sua cultura musical. São Jorge bem precisado está!
Também o Clube lá vai funcionando como um espaço de convívio e, de facto, as tardes de sábado e domingo ainda se apresentam com algum calor humano, visível nas cavaqueiras à entrada do Clube e nas partidas de sueca, no seu interior, habitualmente inspiradas em rodadas que devem ser pagas pelos menos dotados nas cartas… ficando habitualmente a consolação: “azar às cartas… sorte no amor!”
E, claro, o Centro de Solidariedade Social que, enquanto principal empregador (?) de São Jorge e prestador de cuidados sociais e de proximidade, assegura qualidade de vida e bem-estar a um número cada vez maior de são-jorgenses!
 
Mas, sente-se que São Jorge está a morrer…
 
Nesta quadra natalícia e por duas noites consecutivas, entre as 21h e as 24h estuguei o passo, pisei a neve, respirei de modo ofegante, aqueci os pés e apreciei luzes e sombras da grande maioria das ruas, quelhas e escadarias de São Jorge…
Confesso que, salvo à porta do Clube, à Cruz-da-Rua (junto ao café do Peixoto) e à Ponte, não tive o privilégio de sentir o calor de vozes são-jorgenses…
De facto, em todas as restantes ruas, quelhas e escadarias, fosse ao Quintal, no Adro da Igreja, ao Passadiço, à Eira, ao Rodeio, ao Pombal, aos Torgais, à Costa, aos Cabecinhos, à Amoreira, ao Terreiro, nada se ouvia a não ser a chuva e o ranger dos meus sapatos, ora na neve, ora na calçada… acho que só me cruzei com uma pessoa, quando descansava por momentos nas alminhas da Capelinha, local onde relembrei emoções e imagens de quando teria 2 a 3 anos e ouvia histórias ao colo do meu bisavô!
Várias vezes passei junto da casa de pedra onde está instalada a  “Associação da Juventude Sãojorgense”, em frente da loja da Ti Silvina, e aí abrandava o passo, punha o ouvido à escuta e tentava ver algum sinal para lá da janela, onde umas luzinhas de Natal piscavam uma pálida luz, quase envergonhada, tentando dizer-me…  “olha que aqui não há ninguém…”
 
Mas da última vez que por lá passei, já tinham batido as onze da noite no sino da Igreja, e depois de não sentir vivalma e estando quase a dobrar a esquina , em frente à casa da família dos Coelho, ouvi uma voz jovem e acolhedora que, vinda da Associação da Juventude Sãojorgense me chamou…
- Olá, boa noite. Não quer entrar? Venha aquecer-se ao pé de nós e falar um pouco da nossa Aldeia!...
Admirado, pois ao passar não tinha pressentido vivalma, virei-me e vi um jovem são-jorgense que respirava alegria e de mãos abertas me convidava a entrar…
- Obrigado. Aceito. Quase a correr voltei atrás e subi as escadas que antecedem a porta de carvalho antigo (?) que guarda a AJS!
Cumprimentei o jovem simpático que me acolheu para o interior da casa e reconheci nele traços de um amigo de infância que partilhou comigo a carteira da escola da Ponte!
A sala, embora modesta e pequena, acolhia mais de uma dezena de jovens; uns consultavam a Net, em 2 PC, enquanto os restantes se distribuíam por 2 pequenas mesas redondas, onde 4 jogavam às cartas e outros consultavam revistas e desdobráveis, parecendo estarem a programar actividades culturais…
Exactamente no meio da sala uma salamandra redonda irradiava um calor acolhedor.
O meu jovem cicerone passou a apresentar-me aos presentes e a explicar-me as actividades da AJS…
- Aqui funciona o “Canto dos Roteiros”, isto é, agendamos e realizamos visitas guiadas às memórias da nossa Aldeia; temos em programação cerca de 20 passeios por São Jorge, uns curtos, dentro da própria aldeia… Tá a ver os prospectos? …  E visitamos vários locais com significado, onde descrevemos o que já lá funcionou, as pessoas que lá habitaram, as actividades que se realizaram lá… Em todos os passeios procuramos que as pessoas mais antigas e mais conhecedoras possam testemunhar as suas vivências.
- Por exemplo, temos o passeio aos largos (Eira, Adro, Cruz-da-Rua, Amoreira, Passadiço, Terreiro, Quintal e Rodeio); é um passeio de 2h e destina-se especialmente aos filhos dos nossos emigrantes.
- Temos outros passeios temáticos; por exemplo, o passeio às regadias, minas e presas, dura 5h e é de dificuldade média; temos o passeio aos moinhos de água e lagares, dura 6h e é mais duro, pois começamos nos Cambões.
- Temos o roteiro dos mineiros, que são 2 passeios de dificuldade elevada, durando um 6 horas e o outro 10h, pois um começa nas Meãs e o outro termina na Covanca e que ilustram o quotidiano dos nossos mineiros a irem para o Vale de Ermida, para a Panasqueira e para a Barroca Grande.
- Temos o roteiro dos cereais, também de elevada dificuldade, pois visitamos todos os locais agrícolas onde se semeava milho e centeio.
- Temos alguns passeios mistos, por exemplo este desdobrável explica 2 roteiros do observador de aves e animais selvagens: um começa na Eira, Cortevale, Barreira Branca, Vale dos Coelhos e Betouril, Aradas, Aldeia das Aradas, Meães, Coimbrão, Portela, Quebrada, Seixo, Mina da Selada, Fraga do Penico, Fontanheira e termina no Pombal; o outro ainda é mais longo e duro pois é a clássica ida ao Picoto, pela Portela e regresso pela Fonte Fria e capela de Santa Bárbara.
- Temos ainda passeios às Minas, organizadas com a máxima segurança; estamos a planear o roteiro das Torvas, com a presença de um espeleologista e de um técnico de segurança e este passeio não pode ter mais de 6 participantes…
- Aqui funciona o “Canto do Teatro & Espectáculos” e temos programado vários teatros de rua, com a participação de associações teatrais do nosso concelho. Estamos a reactivar o rancho folclórico, num misto de grupo de cantares e de instrumentos de corda… Vamos amanhã cantar as janeiras!
- Deste lado temos um misto de pequena biblioteca & São Jorge em Imagens com muitas publicações que nos interessam e também um conjunto de escritos, imagens e publicações sobre São Jorge. Pensamos realizar uma exposição fotográfica e de objectos tradicionais, apoiados em colóquios e debates no próximo verão, aproveitando a presença dos nossos emigrantes. Vamos depois publicar no nosso site e em papel uma obra sobre a história e a cultura de São Jorge.
- Temos ainda aqui o “Canto do futuro” onde imaginamos coisas boas que podem acontecer em São Jorge, para além de ideias e projectos que podem ser de turismo ambiental, estamos a programar actividades para as escolas do nosso concelho e estamos a trabalhar com várias entidades, incluindo uma universidade, etc. Ainda são segredo, por isso não lhe posso dar mais detalhes!...
 
- Fico surpreendido com tantas ideias e iniciativas, retorqui-lhe, não escondendo algum embargo na voz… Embora esteja fora, também me disponibilizo para apoiar e participar, caso…
- Precisamos mesmo do apoio de todos os são-jorgenses, atalhou o jovem dinamizador de alguns projectos da AJS… Ao convidá-lo a visitar-nos, não escondo, foi também essa a nossa motivação…  Queremos contar consigo!
Deixados os meus contactos e identificadas algumas necessidades onde eu poderei ajudar, despedi-me… Antes de abrir a porta, olhei para trás e senti uma enorme alegria por ver todo aquele dinamismo… Numa noite de inverno 12 jovens estavam a assegurar o futuro de São Jorge…
De facto, o título desta crónica deveria ser “ São Jorge está a construir o seu futuro…”
 A realidade crua e dura…
No meio da rua, ouvindo bater a meia-noite, com farrapos de neve a pesarem-me no guarda-chuva e olhando para a loja que foi da Ti Silvina, senti o frio da noite e… repentinamente… virei-me e vi as escadas que dão acesso à AJS cheias de neve imaculada, sem qualquer rasto… Levantei os olhos e o silêncio era total… a AJS estava fria, fechada e lá dentro não se sentia o pulsar de ninguém… nem mesmo as pálidas luzinhas de Natal da véspera espreitaram à janela!
Que pena… Esta visita à AJS não passou de um sonho!!!

 

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