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CAMINHO das PEDRAS ...

DA MINHA LÍNGUA VÊ-SE O MAR. DA MINHA LÍNGUA OUVE-SE O SEU RUMOR, COMO DA DE OUTROS SE OUVIRÁ A FLORESTA OU O SILÊNCIO DO DESERTO. POR ISSO A VOZ DO MAR FOI A NOSSA INQUIETAÇÃO. Vergílio Ferreira

CAMINHO das PEDRAS ...

DA MINHA LÍNGUA VÊ-SE O MAR. DA MINHA LÍNGUA OUVE-SE O SEU RUMOR, COMO DA DE OUTROS SE OUVIRÁ A FLORESTA OU O SILÊNCIO DO DESERTO. POR ISSO A VOZ DO MAR FOI A NOSSA INQUIETAÇÃO. Vergílio Ferreira

07
Jul10

O ENCONTRO... TANTOS ANOS DEPOIS!


CorteVale

Finalmente encontram-se.

Os dois têm o mesmo nome: José!

Ou melhor, será o reencontro, pelo menos para o Zé que partiu recentemente. Este procurou o outro Zé, que partira há muitos, muitos anos… Há mais de trinta anos que o Zé mais humilde partiu; provavelmente, há muito que terá sido esquecido por muitos que o humilharam e mesmo por aqueles que o forçaram a partir…

Mas o outro Zé, o que partiu apenas há umas semanas, bem mais alto e conhecido que o Zé, há muito desaparecido, não o esqueceu… pois já o tinha encontrado, não necessariamente a ele, mas à sua trágica história.

Há umas boas dezenas de anos… procurou-o, pelas ruas e nas memórias das gentes de São Jorge… mas as pessoas a quem perguntou pelo Zé, de São Jorge, o mais humilde, não deram qualquer resposta ao Zé, inquieto, jornalista, na altura pesquisador de memórias e afectos das comunidades e povos de Portugal…

A ida a São Jorge não foi em vão; o Zé (pre)sentiu o outro Zé, na indiferença,  no ramerrame, no desconhecimento, no desenrasca, no isolamento das vidas em São Jorge…  

De facto, no espírito das pessoas com quem falou, nada encontrou! Ninguém sabia quem tinha sido o Zé! Na altura concluiu que as consciências, quando estão pesadas, forçam o esquecimento…

Nessa procura que fez pelo nosso José, em dia agreste, o outro José, explorador de emoções e afectos, constatou, naturalmente,que o Sorna estava a funcionar, à Eira, para variar, carlotava-se, nas tabernas discutia-se futebol e, claro, à boca da mina falava-se do último despedimento, mais um "coitado" apanhado com um cristal escondido nas partes…

 Como quase sempre, só se tratavam de agendas banais, de coisas fúteis, mas que não incomodassem… não é bonito falar de coisas sérias, ou melhor, de coisas pesadas, bem pesadas na consciência colectiva de todos nós…

Os dois José nunca se tinham visto. As fisionomias deles não são importantes, embora ambos tivessem feições secas… chupadas; o que procurou o outro era bem mais alto, enquanto o procurado, não só era mais baixo, como também andava curvado com o peso das mágoas e das tragédias que o visitaram de amiúde… demasiado amiúde para uma pessoa só, sensível e frágil…

Sim. Sem se conhecerem fisicamente as suas vidas cruzaram-se, ou melhor, um deles foi à procura do outro a… São Jorge…As pessoas daqui não lhe deram nada… Não senhor! Não, não encontrou este ilustre São-jorgense. Ilustre? Claro que sim: ilustre pelas lições de vida não vivida, pelo infortúnio que o visitou, ilustre pelo abandono a que foi votado… até na morte José foi ilustre, pelo sem sentido do motivo que o matou… também ilustre porque é o único São-jorgense que inquietou o outro José, prémio Nobel…

Mas agora os José têm todo o tempo do mundo para conversarem…  

- Vê, além, à Ponte, a seguir àquele café? Apontava José. Sim, havia ali um pardieiro, uma casita de pedra… sim era ali que eu vivia… Com o meu menino… muito inteligente… vida tão curta e ceifada de forma tão estúpida… a sua curiosidade e a sua ingenuidade eram angélicas… Também ele foi muito magoado...

- Mas, meu bom José, porque gosta tanto deste sítio? Perguntou o José, em tempos pesquisador de emoções e culturas…

- Porque gosta tanto destas Alminhas, onde estamos sentados? Continuou a perguntar o José que há muito tempo procurou o José de São Jorge

- Não vê, caro José, que daqui vejo o sítio onde estava a minha casinha, aqui, ao meu lado, tenho o meu menino, tenho ainda a minha mulher, que também partiu demasiado cedo e agora também o tenho a si, meu grande amigo José…

 - E já viu? Aqui ao nosso lado, nestes azulejos, está contada a história de um parente meu que há muitos, muitos anos, conseguiu matar um lobo com as suas mãos, agarrando-lhe a língua… que homem corajoso…

 - Esta façanha, que aconteceu lá para os lados da Cerdeira - havemos de lá ir - foi para mim uma bóia a que me agarrava nas alturas mais difíceis… E o que eu passei…

Quem, neste fim de tarde, de um dia de calor, mas já lusco-fusco, tivesse a serenidade, a visão clara e pura de uma criança e olhasse, a partir da Ponte, para as Alminhas brancas, lá no outro lado, veria duas breves silhuetas – os dois amigos José – entretidos em amena cavaqueira…

 O humilde José explicava ao outro José, prémio Nobel, como se apanha um lobo enraivecido, com as mãos, mostrando-lhe a destreza usada pelo seu parente para, sem largar o lobo preso pela língua, tirar a navalha do bolso e ferrá-la no pescoço do lobo…

 

 

 

14
Jun08

"O Fantasma de José Júnior"


CorteVale

 Hesitei durante muitos dias se deveria partilhar aqui – neste blog pessoal, mas pouco intimista - o meu olhar sobre esta  tragédia que aconteceu em São Jorge há uns bons 35 anos!...

 

Decidi-me! Os meus leitores merecem-me esta confiança!

 

Mexer nas nossas memórias sensíveis e mal resolvidas é, no mínimo, incómodo...

 

Todos temos telhados de vidro e todas as comunidades e povos têm “sótãos” onde se guardam e se esquecem (ou se reprimem) factos, acontecimentos, emoções e experiências, cuja revelação nunca é fácil e, a maioria das vezes, é dolorosa!...

 

Saúdo a lucidez e a coragem do Vitor e dos nossos conterrâneos que o têm acompanhado nesta reflexão e agitação das mentalidades e faço votos para que não se transforme numa catarse recriminatória, mas antes numa oportunidade para que na nossa terra não se repitam práticas de abandono, de exclusão e de violência como as que vitimaram o José Júnior!

 

Sejamos  honestos. Estas tragédias não se abateram só sobre o José... quem não se lembra de outros nossos concidadãos, mesmo crianças, que, votados ao abandono e escorraçados pela nossa comunidade, se afundaram em tragédias pessoais de desfecho igualmente chocante e que terão deixado alguns Sãojorgenses mais atentos e sensíveis completamente chocados ou mesmo destroçados?

 

Que o “fantasma do José Júnior”, título da crónica de Saramago, seja um bom fantasma para todos os Sãojorgenses e nos mantenha de espírito alerta e permanentemente lúcidos para sermos capazes de apoiar e socorrer aqueles que, ao menor sinal de alarme, se queiram despedir precocemente da vida ou desistir de serem felizes, mergulhando na valeta para onde a nossa indiferença e desdém os tem empurrado...

 

Não será que esta obsessão permanente de competição uns com o outros, em que a ética e a moral não abundam, não nos consome e aliena e não vitima aqueles que, por maior sensibilidade ou fragilidade emocional, não querem participar neste “jogo”?

 

                   

 

Há mais de 10 anos, inquietado por esta tragédia do José Júnior, desatei a oferecer em dias de aniversário de familiares esta “Viagem a Portugal”, de José Saramago, trata-se de uma viagem aos afectos, à cultura e também às angústias e fantasmas das comunidades e populações... recomendava, na altura, a leitura das páginas 141 a 143...

 

 

 

Ironicamente nunca nenhum dos meus, a quem ofereci o livro, tomou a iniciativa de discutir abertamente esta crónica – “o fantasma de José Júnior”... trata-se, de facto de 3 páginas que são um verdadeiro espelho, onde podemos espreitar o nosso rosto de SãoJorgenses e... não gostamos, de facto, do que vemos reflectido nesse espelho mágico!...

 

     

 

Não somos obrigados a gostar do que lá está escrito, mas temos a responsabilidade de aprender a evitar que algo semelhante aconteça ao nosso vizinho, ao nosso conterrâneo emigrado, ao nosso familiar, ao nosso colega dos bancos da escola!... seja ele do Pombal, da Cruz-da-Rua, da Capelinha, da Costa, do Rodeio, dos Torgais, da Ponte, do Porto, do Quintal...dos Cambões, do Vale, da Panasqueira, esteja ele no Canadá, na Alemanha, na Suíça, ou seja ele um ser humano desconhecido que esteja perto de nós!

 

 

 

Também a tragédia de José Júnior se cruzou comigo!

 

No ano lectivo de 72/73 dava aulas de educação física na Escola (na altura Comercial e Industrial) Campos Melo da Covilhã... foi a minha primeira experiência profissional a sério! Na altura hesitava entre estudar para professor de educação física, vir a ser psicólogo (o que acabou por acontecer) ou estudar advocacia. Como o ginásio da escola, onde eu dava aulas, ficava praticamente ao lado do tribunal da Covilhã aproveitava o fim das aulas para assistir discretamente a julgamentos e apreciar o funcionamento da justiça e (o que mais me interessava na altura) observar o desempenho, ora dos juízes, ora dos delegados do ministério público e... claro, as prestações dos advogados na barra de tribunal...

 

Numa tarde de um dia soalheiro, eram réus alguns jovens Sãojorgenses que tinham expressões de incrédulos... parecia que o céu lhes tinha caído em cima... estavam esmagados pela realidade que até aí lhes fora inconsciente?...Como terá sido possível que “brincadeiras estúpidas” e comportamentos inconscientes e desculpabilizados pelo efeito do álcool tivessem desencadeado aquela tragédia?!!! Pensariam eles e as não mais de uma dúzia de pessoas que comporiam a sala de audiências... 

 

Já não me lembro exactamente de qual foi o veredicto, nem isso importará, mas lembro-me de que passaria pela cabeça de alguns dos presentes que o José Júnior é que teria estado no sítio errado e tombado de forma errada no meio de uma "brincadeira inocente"!.. Muitas consciências terão ficado aliviadas quando o juiz perguntou (a um familiar?) que pena ou reparo pedia a família ao tribunal e... numa voz humilde, tímida e fortemente constrangida terá balbuciado que eram bons rapazes, filhos de famílias humildes e trabalhadoras, coitados fizeram aquilo sem querer e toldados pelo vinho... que os mandasse em paz!

 

 Na altura pensei que talvez fosse mais útil uma pena do género: "sois condenados a correr mundo durante 10 anos e ajudarem a levantar da lama todos os seres humanos que encontrardes despojados e que tenham desistido de viver..."

 

 

Provavelmente ficaremos mais em paz com o José Júnior e com nós próprios sempre que conseguirmos evitar, nem que seja por um só dia, que alguém viva os momentos trágicos que ele viveu... estas atitudes para com os nossos semelhantes serão bem mais úteis que uma qualquer tabuleta numa qualquer esquina de São Jorge!  

 

Cortevale

 

 

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